O POÇO | Confira nossa crítica
A cada mês, aleatório como o nascer de uma pessoa – ninguém não escolhe onde e como nascer, prisioneiros são rotacionados em andares diferentes de uma prisão com mais de 300 andares. Estudos são feitos com cada um deles ao entrarem na prisão sobre seus gostos alimentares. As Comidas são produzidas em cima da sugestão dos prisioneiros e rigorosamente preparada em uma cozinha de alto padrão, com um rigor digno de realeza, extremamente impecável. Na quantidade, tecnicamente, se todos os prisioneiros forem solidários, a comida é o suficiente para todos se alimentarem de forma que ninguém precisaria passar fome.
Em cada andar, uma dupla de prisioneiros tem acesso a cama e água, além de poder levar um “item” a sua escolha. Por fim, não é permitido a detenção de pessoas menores de 18 anos nessa prisão. Aqui, alguns estão porque cometeram crimes e estão lá contra a sua vontade, outros são voluntários e estão nessa prisão porque ganharão um “certificado” que vale muito no mundo lá fora. Aqueles que estão no andar mais acima recebem a comida primeiro, porém, ninguém pode guardá-la, apenas comer em enquanto o elevador da comida está ali, servindo-os. Depois, o resto de sua comida, que inicia no andar 1 como um verdadeiro banquete, segue para o andar de baixo.
Esse é o sistema do poço.
Um sistema rotacional que muda mensalmente, aparentemente justo, completamente aleatório e que põe em teste a “generosidade coletiva” de todos aqueles que estão no poço – se você comer apenas o que precisa, existirá comida para todos. Mas uma pergunta percorre todos os prisioneiros: em que andar eu vou cair no próximo mês? Nesse sentido, a necessidade de aproveitar o “agora” daqueles que estão nos andares acima é absurda. Os que estão em baixo, apenas desespero, pois como dizem os personagens do filme: “quem está em cima nunca vai escutar quem está em baixo.”
O filme apresenta 5 personagens que são marcantes para entender toda a dinâmica do poço. O primeiro é Goreng, o protagonista; este é aquele quem exemplifica a passagem do homem teórico sonhador para o pragmático realista. Ele entra como um homem diplomático, ponderado e comunicativo. O livro que ele carrega mostra o quão ele sonhador é: Dom Quixote. De início, repudia completamente ideia de comer o resto da comida dos outros, mas logo sede a fome e aos conselhos de seu colega de sela Trimagasi, o segundo personagem relevante.
Trimagasi é um homem vivido, pragmático e cético. Sua palavra favorita é o óbvio, repetindo-a várias vezes, o que revela sua experiência, sua falta de paciência para novatos e sua descrença para mudanças. Ele escolheu uma faca especial como seu item para dentro da prisão, quanto mais a faca corta, mais ela fica afiada – que assemelha com sua personalidade e experiência. Ele é o primeiro companheiro de quarto do protagonista, com quem vive bons momentos. Apesar disso, no fim do mês e na mudança do andar da prisão, infelizmente a parceria entre ele e Goreng acaba, isso por causa da armadilha de Trimagasi.
Mas antes de chegar o conflito de Trimagasi e Goreng, nosso protagonista é apresentado a uma terceira personagem, Miharu, uma mulher que aparentemente procura sua filha entre os andares da prisão, sempre pulando no elevador de comidas e descendo para os andares mais abaixo. Não é revelado que item ela escolheu para estar ali, apenas é frisado o fato de ela ser tratada como louca pelos outros personagens, uma vez que, pelas regras do poço, não há criança ali, nenhum menor de idade, e mesmo que existisse, nunca sobreviveria. Logo, todos pensam que ela simplesmente enlouqueceu, o que é fácil naquela prisão.
Então, há o conflito entre conflito de Trimagasi e Goreng, onde ele é salvo por Miharu e há passagem do personagem para aquilo que há de pior naquele lugar: a loucura. Dali para a frente, o seu livro não tem mais sentido algum, nosso cavaleiro Dom Quixote descobriu que tudo aquilo eram apenas moinhos de vento, não há dragão, nem fantasias. Suas alucinações depois de ter matado e se alimentado de seu antigo companheiro de sela tem simbologias múltiplas, até bíblicas, de forma que Trimagasi se marca nele para sempre, como um trauma, mas também como aquele quem proporcionou ele estar vivo – por causa do cadáver ter virado a sua comida; mas há um lado poético sobre como se ele tivesse absorvido todo o seu ceticismo também, agora ele não era um homem de hipóteses, mas de práticas, um homem vivido.
Dali pra frente, as alucinações parecem se comportar como instintos de sobrevivência, claro que do trauma que sofreu, mas há um simbolismo de que, agora que ele havia entendido o que o velho Trimagasi queria dizer! Agora ele tem um pouco do seu colega de sala dentro dele – literalmente! Agora, as coisas eram mais “óbvias”. Depois disso, seu companheiro de quarto não poderia ser pior, Imoguiri, uma mulher que trabalhou no Sistema do Poço, que crer nele, que “sabe como ele funciona”, que fez a besteira de escolher está ali como Goreng. A ingenuidade é impressa quando vemos que ela escolheu um cachorro fofinho como “item para levar” para dentro do poço. Ela, assim como Goreng no começo, vende todas as suas teorias do ideal, do que deveria acontecer, do que é lógico.
Afinal. Seria ela uma “comunista”, também?
O Poço dança o ritmo do “Bom Chibom Chibom bombom”. O de cima só olha para cima, só responde o de cima, nunca o de baixo. E exatamente por isso ninguém nunca responde ninguém, o diálogo com o de baixo serve apenas para demonstrar autoridade, superioridade e deboche. Imoguiri, após tentar explicar as leis do poço, não demora para aprender sobre o que o ambiente realmente é, principalmente depois que seu cachorro foi morto por Miharu. Ali, o nosso protagonista fica ainda mais convicto de que a mulher de fato é louca, afinal, ele sabe o que é o poço, mesmo que houvesse uma criança, ela já estaria morta.
O último companheiro de quarto é Baharat, que seria a uma versão mais equilibrada e positiva dentre os que já apareceram ali. O homem quer chegar no topo do poço e, para isso, seu item é uma corda. Nesse momento, em que ele é companheiro de Goreng, eles não estão tão longe do topo, porém, era óbvio que o nosso amigo não conseguiria escalar os andares, pois precisaria da ajuda das pessoas de cima, e no sistema “Bom Chibom Chibom bombom versão Poço”, o de cima só olha pra cima, e a plataforma só desce.
Ali fica nítido o poder do imediatismo. A necessidade de aproveitar o momento bom enquanto ele existe, consumindo tudo que puder, mesmo que não precise. E é esse sentimento do imediatismo, do medo de cair em um andar lá embaixo, que faz com que o sistema seja autodestrutivo sempre. Sempre os que estão em cima vão ter medo de estar em baixo, sempre os que estão em cima, vão sugar tudo, mesmo que não precise, com medo de um dia estarem em baixo.
Parece uma “psicologia de roubo de dinheiro público” por corrupção – o Brasil não tem sistemas públicos de saúde, educação, segurança de qualidade porque a verba deles se torna desviadas. E, se um pobre que sobe ao poder, com medo de voltar pra baixo, consome mais do que deveria (mais do que o seu salário), se corrompe, e ele cria a camada dos de baixo. Os covardes, com medo do caos, se tornam corruptos; corrompidos, eles são aqueles que alimentam o próprio sistema que é movido pelo medo. O medo é o combustível! O medo fabrica o caos, o caos fabrica medo. É um ciclo sem fim. Um sistema perfeito de desgraça. Esse é o poço, mas também é o sistema público e as instituições de países subdesenvolvidos que sofrem com a corrupção.
E a culpa não é só dos políticos. O Poço pode ser toda uma nação também! Em tempos de Corona Vírus, onde o medo cresce constantemente, a máquina é alimentada! A máquina é alimentada pelo medo, não lembram? E ela fabrica o caos. Pessoas estocam comida em uma quantidade irracional – produtos de limpeza, álcool, dentre outros. A lei da oferta e da procura, que lucra quando o caos começa, aumenta o preço dos produtos: muitos querem, querem mais do que precisam, deixando outros sem ter o suficiente, então, torna-se “raro” o produto, o preço sobe, pessoas ficam sem.
E tudo isso porque os covardes alimentaram a máquina com medo e se corromperam, não tiveram consciência social.
Então, nossos “heróis” Trimagasi e Baharat finalmente entenderam esse sistema de verdade. Sem sonhos, sem mentiras, sem utopias. Eles perceberam que, através da força, da violência, eles poderiam ser mais assustadores que o próprio sistema e poderiam fazer ele funcionar de verdade, a ferro e sangue. Então, os dois personagens decidem descer junto com a plataforma, armados, decidindo o que as pessoas deveriam comer para que sobrassem para aqueles que estão mais em baixo. Os nossos comunistas foram longe demais, precisaram manchar suas mãos de sangue, comportar-se como um criminoso para buscar justiça em um sistema maquiado pela meritocracia da aleatoriedade (ler-se sorte, afinal, acordar em um andar lá em cima tem o mesmo mérito que nascer em berço de ouro, lembram?).
Depois de descerem muitos andares, Trimagasi e Baharat encontram um homem que mudariam ainda mais sua visão daquilo tudo, um homem sábio que mostra que tudo o que eles vão fazer é passageiro, pois não só as pessoas que estão ali estão erradas, mas o sistema como um todo. Mudar o sistema, não é só mudar as pessoas para que faça o sistema “funcionar”. O sistema já funciona, é uma máquina do caos. O que tem que ser feito é provar que o sistema é falho. É preciso mandar um recado ao sistema, diretamente para ele, como se fosse uma entidade e ela tivesse uma autocritica sobre si mesma.
Então, o “pudim” maravilhoso se torna a mensagem.
Mas o que seria essa mensagem? “Olha como somos civilizados. Sabemos dividir a comida, deu para umas 600 pessoas e ainda sobrou.” Isso só colocaria a prova que Imoguiri estava certa, que o sistema funciona. Mas provaria também que aquelas pessoas são civilizadas, que existe consciência social, e por que diabos pessoas tão éticas socialmente estariam presas em um local como aquele? A lógica do poço é autodestrutiva: se ele funcionar, então, as pessoas deixam comida para todos, elas têm consciência coletiva, mas se elas têm essa virtude tão rara, por que estão presas? A falta da consciência coletiva é o que torna o sistema brutal e o que justifica as pessoas estarem presas ali – algumas estão porque querem um certificado que sabem ter consciência social, outras, porque não tem e foram presas ali! Em meio ao caos, em pouco tempo todos se tornam malucos, logo, criminosos.
Então, o pudim talvez não fossem a mensagem que ficasse bastante clara para aqueles que estavam no sistema.
O sistema cria suas próprias regras, de forma que ele não pode ser incoerente, ele precisa obedece-las. Quando o sistema quebra suas próprias regras, o sistema vira o criminoso, ele se prova falho, agressor e sem moral alguma que o defenda. Quando você está dentro de um sistema você acredita na regra e se enfurece quando o sistema é quebrado. Em um carro, você ultrapassa no sinal verde porque acredita que vão parar no vermelho. Esse é o sistema. As pessoas podem burlar, errar (...), mas o sistema, “tem tese” é perfeito e faz com que você tenha fé nele, porque só depende de todos. Em um jogo, quando há algo que o faz trava, ou acontecer algo que não deveria, essa fé no jogo se vai também, não há razão em jogar um jogo que quebra as próprias regras que ele estabeleceu.
Mas aí encontramos a filha de Miharu.
E sabemos que, no sistema do Poço, é “impossível” haver menores de idade. Se a criança está lá, o sistema é falho. E foi falho não porque alguém tentou quebrar o sistema, porque alguém tentou pular os andares do poço, ou trazer comida de casa, ou enfim... Ele é falho porque ele estabeleceu regras que ele não cumpriu. Por incompetência. Graças a Revolução feita por Goreng e Baharat, eles finalmente encontraram a incoerência no fim. Eles foram fortes para alimentar a criança e entender que, a mensagem era algo além da comida.
A mensagem era que uma garota indefesa e menor de idade, o que é proibido, imoral e incoerente; presa em um local como aquele por meses, Deus sabe como, conseguiu voltar para o topo: viva, salva e alimentada.
A mensagem não poderia ter um mensageiro, pois o sistema encontraria uma forma de justificar todo o ocorrido, desde os grandes feitos (do ato da garota está salva e bem alimentada graças a uma dupla de rapaz altruístas), até o erro de ela está ali. A garota voltar, sozinha, viva, alimentada, coloca não só o sistema de “regras” do Poço em cheque, mas também gera questionamentos sobre o altruísmo das pessoas que estão presas ali em baixo – afinal, o Sistema não sabe como aquela garota chegou ali, quem trouxe ela, como ela está bem.
O sistema não sabe quem, ou quantos, consertaram o erro do próprio sistema. E essas pessoas estão lá embaixo, essas pessoas que fizeram esse feito heroico altruísta fantástico, podem estar passando fome, loucas, ou mortas por causa do próprio sistema que já é contestável. A revolução é a mensagem. A revolução não pode ter rosto. Não pode ser alguém. A revolução é só exercício de reação de oprimidos contra um sistema que oprime e é desleal em suas próprias regras. Foi isso o que Goreng e Baharat fizeram. Essa foi a mensagem.
Então, quanto tempo vamos demorar para mandar uma mensagem?
- Trailer
- Ficha técnica
Duração: 1h 34min
Gênero: Ficção científica, Terror
Direção: Galder Gaztelu-Urrutia
Elenco: Ivan Massagué, Zorion Eguileor, Antonia San Juan
Nacionalidade: Espanha
Distribuição: Netflix
Ano: 2020
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